sexta-feira, 23 de outubro de 2009

11 - “ANTES DE TUDO UM FORTE”

sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Esmeraldino Trancoso era um desses coronéis que não haviam se recomposto da queda da monarquia (1889) e não o faria nunca. Definitivamente jamais seria um republicano.
Àquela época jovem e impetuoso e agora um septuagenário, conservava o mesmo rigor antirrepublicano.
Tinha enfiado na parede da sala um quadro de proporções agigantadas, assinado pelo mestre Aureolindo, e que retratava a figura do último imperador, por ele eleito como uma espécie de padroeiro pessoal. Era uma pintura moderna, provavelmente o mais belo quadro daquela casa.
O nome Esmeraldino fora dado pelo pai, fortuito possuidor das terras que abrigava uma jazida de esmeraldas de incalculável valor e que fora a responsável por elevar o nome, o poder e a fama dos Trancoso para além daquelas terras.
Havia entre Esmeraldino e Salustiano da Conceição, outro daqueles coronéis enfezados e aliado dos Alcebíades (talvez a mais importante família da região), uma pendenga que envolvia a posse de terras, léguas e mais léguas. O fato é que a coisa se arrastava desde os avós, nos tempos do império.
Acusavam-se mutuamente de posse ilegal, extrapolação de divisas, roubo de gado, emboscadas, tocaias, etc. E como ambos os lados não eram flor que se cheire, tinham lá suas culpas e razões. Era uma questão fácil de julgar, pois inocente não havia entre aquelas gentes.
Nessas pendências os mesmos envolviam-se de corpo e alma, envolviam suas famílias, envolviam famílias partidárias, politiqueiros e, por fim, capangas e jagunços, aí o sangue corria.
O delegado Ornélio Bramante Brumado, que não tinha a menor vocação para herói e nem era candidato a fazer da esposa uma viúva, não ousava interpor-se ou tomar partido de um ou outro lado, apenas registrava queixas, batia em bêbados, “mulheres de vida fácil” e recebia seu soldo mensal, nada além.
O que ocorre é que Esmeraldino Trancoso tinha criado, decididamente, um poder paralelo e dispunha de um número nada modesto de jagunços das mais diversas lapas, origens e quilates. O mais perigoso destes era um tal de Marimbondo, baixinho, preto, de nariz grande, simpático e que andava sempre acompanhado de um sujeito branquelo, grandalhão, alcunhado por Frango d’Água. Eles viviam nas proximidades da cidadezinha de Gentil do Ouro, não muito longe, e eram contratados por Esmeraldino pra tarefas que requeriam urgência ou que não admitissem falhas e isto porque Frango D’Água tinha uma pontaria como ninguém.
Marimbondo guardava certa semelhança com um outro jagunço, este de nome Neco, que fora mencionado pelo Dr. Teodoro Sampaio – quando por ali passou entre 1879 e 1880 – ao referir-se aos distúrbios provocados em diversas comunidades ribeirinhas do São Francisco, isso do lado mineiro.
O fato é que, onde Esmeraldino tinha poder de mando, as forças do estado não chegavam, eram secundadas ou desapareciam.
Aqueles seus “cabras-de-peia” ou cacundeiros obedeciam a uma só lei, a um só mando, a uma só vontade, a qual sempre cumpriam de um mesmo e único modo, facão numa das mãos e fuzil na outra.
Por vezes, entretanto, Esmeraldino, como bom político, e até pela escassez de homens da milícia, cumpria ele mesmo o poder de polícia e perseguia os bandidos a seu bel-prazer, era um misto de justiça e vingança. Era a contravenção aplicada em favor do estado.
Havia outros coronéis de mesmo quilate e que dispunham de igual força de jagunços, com os quais faziam e desfaziam, tanto que um deles chegou a medir forças com a Coluna Prestes, resultando na derrocada desta, que debandou sertão afora.
Muitos jagunços, devido a seu caráter indomável e às vezes brutal e uma série de inconvenientes, se uniram em bandos sem paradeiro fixo, tornando-se cangaceiros.
Assim era Curiapeba. Assim era Esmeraldino. Assim era Marimbondo, agora denominado Cangaceiro.
Marimbondo, igual que Cabeleira, Sinhô Pereira, Lampião, Neco, Tonho, Antonio Silvino e Dioguinho, não era de abaixar cabeça pra Coronel nem pra macaco. Ao seu bando estava agora agregado um sujeito de nome Zeca da Dó, ex-agregado e jagunço do famigerado Coronel João de Sousa Macaúbas, compadre de Esmeraldino Trancoso. O tal do Zeca era o encarregado de dar sumiço aos desafetos do falecido Coronel e tudo fez pelo patrão, menos impedir a sua morte pelas mãos do negro Resmulungo, numa boca de noite, dia de sábado e feira em Curiapeba.
Voltando a Esmeraldino, este havia tido a proeza de fazer mais inimigos do que o absurdo poderia suportar e, dentre estes, que, diga-se de passagem, não eram poucos, agora estava Zeca da Dó e, com ele, Marimbondo.
Todavia o poderio do Coronel era algo fora do normal e do sensato.
Naquele tempo o poder em Curiapeba estava nas mãos de gente como Salustiano Montenegro Polissílabo Saraiva, Cirilo Trombetas Waluá, João Tolentino, os Coronéis Dromedário Carmelinho, Justino e Esmeraldino Trancoso, Salustiano da Conceição, Dandinho, o respeitável Turmalino Olhugordo Alcebíades, o primo deste, Libério Alcanforado de Jesus Malhado Alcebíades, e, o agora não tão poderoso, Joviniano Beiramontes Peba.
A nata de Curiapeba era composta por gente importante, gente de respeito e politiqueiros, cujo ponto de encontro tinha lugar na farmácia Hipócrates, de João Tolentino Clepaúva. Eram eles, entre outros, o padre Alfredo, Dr. Guilherme Monteiro Trindade (recém-chegado a Curiapeba), o dentista Athanázio Valovelho Clepaúva (tio do Farmacêutico), o Dr. Délvio Francisco Pereira Castanho Manílio, o advogado Calcídio Sidônio Trombetas e outros coronéis do sisal. Ali também se reunia gente não muito importante, mas que tinha lá seus acessos de influência, entre eles estava o Brotoejas, o Jota Caveira, eu que fuçava por lá de quando em vez, e somavam-se a este calhamaço de falastrões incorrigíveis alguns outros personagens ilustres e vários desocupados.
Outros pontos, menos frequentados e por gente menos importante, eram a venda de Olegário Doca e o bar de Orgasmunda Pereira Cruvaldina (uma espécie de moquifo da cidade) e o Bar do João Emílio Krauser, nos dois primeiros se reuniam a gente comum e no terceiro a nata da intelectualidade, poetas, escritores, pintores, músicos, professores, fazendeiros, turistas, gente frustrada, etc. Nos dois primeiros era pra falar da vida alheia, de mulher bonita, política, caçada de onça, etc., e, no terceiro, era pra falar de coisa alguma de certa relevância.
E, finalmente, o último ponto de encontro era o Teatro Municipal e o coreto da praça, em ocasião das exibições da Banda Municipal e da Orquestra de Violeiros e Zabumbeiros. Todas as exibições públicas estavam a cargo de Tomasino Frutuoso Guarabyra, único maestro da cidade e que, por isso, acumulava essa mesma função de regente em ambas as corporações musicais. Este era cunhado do Dr. Veloso, meu anfitrião, e cujos santos não se bicavam.
Bem, voltando a Esmeraldino, este exercia uma espécie de poder sobre todos os demais e, à exceção dos Alcebíades e dos Carmelinho, ninguém ousaria contrapor-se a uma ordem sua por mais absurda que fosse, e quase todas eram absurdas. Era ele a última palavra fosse no que fosse por aquelas redondezas. Para o bem ou para o mal.
Salustiano da Conceição, conhecedor do desafeto existente entre Marimbondo e Esmeraldino, resolveu que estava na hora de mudar os rumos da política naquelas bandas.
Por intermédio de um de seus comandados, contratou os serviços de Marimbondo e seu bando a fim de dar cabo de Esmeraldino. Para isso prometia-lhes uma espécie de reconhecimento eterno pelos serviços, salvo-conduto, ou coisa que o valha, além de uma, nada irrisória, quantia em dinheiro.
O plano consistia no seguinte: Salustiano convidaria Esmeraldino para negociar algumas léguas de terras, as quais poria à venda e, quando do encontro, a meio do caminho, deveria Marimbondo e seu bando interceptá-lo e dar cabo de sua vida. Quanto aos métodos, estes não importavam.
O capanga, depois do assentimento de Marimbondo, voltou a Salustiano com a notícia do acordo firmado.
Passaram-se os dias, encontraram-se os dois Coronéis. Não é sabido o que foi firmado em relação às terras; não houve tocaia; não mais se viu Marimbondo, ninguém conseguia dar a mínima informação sobre nada...
Seguiram-se várias semanas sem que houvesse notícias.
Por fim, numa madrugada fria, encontram o corpo de Salustiano às beiras do rio das Voltas, com várias perfurações de bala e facão e um bilhete mal escrito, com letras em forma de garranchos, onde se lia com certo esforço:
“...cangacero num trai cangacero – coroné num trai coroné” – “paga di traição é u punhá!...”
Essa era a justiça de Marimbondo que, embora inimigo ferrenho de Esmeraldino, tinha lá o seu código de ética, o qual deveria ser cumprido pelos vivos e pelos mortos.
Essa era a lei do sertão. Uma lei não escrita, sem códigos e sem ritos processuais, mas repleta de princípios e ética.
Quanto ao delegado Ornélio Bramante Brumado, como não era besta, deu pouca ou nenhuma importância ao fato. Registrou o caso, continuava vivo, casado, recebendo seu salário, batendo em bêbados e “mulheres de vida fácil”, e fumando seus charutos Suerdieck, os quais mandava buscar em Alagoinhas.

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