sexta-feira, 23 de outubro de 2009

10 - A VISITA DO SEU DOTÔ

sexta-feira, 23 de outubro de 2009
O Dr. José Vinhais Veloso e sua esposa distanciavam-se tanto daquela fazenda que pareciam visitantes esporádicos.
Assim foi que, depois de certo tempo, quando nada de anormal acontecia e eu continuava em meus afazeres literários, e as atenções gerais rondavam lá pelas bandas do curral, convertidas em cuidados a Marineta, o tal achou de visitar-nos.
Aquele era, até o momento, um dia típico, como os demais, eu já estava afeito ao manuseio da terra e, naquele momento, fazia o replantio de uma parte das hortas, coisa quase que rotineira. Os demais igualmente estavam envolvidos em seus trabalhos, como sempre.
O sertão tem suas leis. Leis não escritas, mas perfeitamente claras. Uma delas é: quem trabalha come. Algo assemelhado aos princípios do monasticismo ocidental e seu Ora et labora.
Bem, então foi quando, inesperadamente, o Dr. Veloso surpreendeu-nos, chegando à fazenda, após muito tempo de distanciamento, com seu jeito ensimesmado e cara de quem chupou limão com casca. Apeou. Segurou o chapéu, enxugava o suor da testa, saudou-nos discretamente, deu um imperceptível sorriso com os lábios cerrados e chamou Bendengó para uma conversa reservada. Os demais saímos dali e continuamos com nossos afazeres.
Assim todos se foram, cada qual para o seu lado; Filó foi meter-se com Marineta que estava lá pelo quinto dos onze meses de prenhez; eu continuei a preparar a terra para o plantio de quiabos e a seguir iniciaríamos a semeadura do algodão.
Quem me visse, não pensaria, por um instante sequer, que eu era um quase recém-chegado da capital, colaborava em dois jornais e tinha uma participação ativa na vida literária da região. Eu me havia tornado um autêntico capiau, torrado pelo sol sertanejo; chapéu de palha na cabeça, botina ringideira nos pés, calça de brim arregaçada até a barriga das pernas e mãos calosas.
Aquela reunião inesperada era deveras inquietante, como se percebia no olhar de todos. Mundico, um velho baixote, de barba rala e cara de umbuzeiro, achegando-se a mim, cochichou:
– Assunta aí esse minino, u dotô com essa prosa demorada num vem trazê coisa boa! Aí tem dedo daqueli apadrinhado fio de uma quenga qui num gosta de nóis.
Depois fiquei sabendo, o apadrinhado já estivera por aquelas bandas e lograra conquistar a antipatia geral. Ninguém fora com a fachada do infeliz.
Uma coisa é certa: Da língua do povo ninguém escapa.
E assim o tempo se arrastava numa imensa agonia.
O Dr. Veloso, embora de extrema circunspecção, era um sujeito, eu diria, nobre, respeitado e muito querido por Bendengó.
Mas todos estavam com a pulga atrás da orelha e alguns com um verdadeiro elefante.
A conversa entre os dois durou quase duas horas. Não sou nada curioso, mas peco por ser metódico e observador e sei que nenhuma conversa cordata e amena duraria tempo igual.
E assim foi (maldita observação metódica), depois deste longo proseamento, Bendengó nos reuniu e disse que a fazenda seria vendida.
O mundo desabou sobre nós várias vezes naquele prenúncio de noite, os olhares se tornaram agonizantes, desfalecidos.
O motivo era bem simples, o Dr. Veloso tinha pretensões de eleger um apadrinhado seu (não é que o velho tinha razão?) para o cargo de deputado e o partido lhe havia cobrado uma participação mais convincente, ou seja, dinheiro grosso.
Dentro de suas posses, o único bem era a fazenda e não via alternativa senão a de vendê-la para dar prosseguimento aos propósitos de eleger aquele que seria o nosso representante, a uníssona voz daquele povo sofrido. Que antagonismo fabuloso, a voz que iria calar as injustiças era agora a causa maior delas. Tinha já um pretendente, tratava-se do Coronel Esmeraldino Trancoso, possuidor de terras e mais terras lá pras bandas do Itiúba e que era um inimigo contumaz dos Alcebíades, família importante e endinheirada, cujas terras estavam do outro lado da serra.
Os Alcebíades chegaram à região quase ao mesmo tempo em que os Peba; ambas as famílias de origem portuguesa, sendo que a segunda ficou conhecida como a primeira a assentar-se por ali e que deu origem ao nome da cidade de Curiapeba. Aquela sugestão havia partido de alguns padrecos, representantes da Cúria, que faziam as vezes de bandeirantes.
Para a venda, entretanto, concretizar-se, era necessária a indicação do apadrinhado pelo partido, quando então ele poderia ter uma legenda como candidato.
O Dr. José Veloso ficou entre nós não mais que dois dias e retornou à capital baiana.
Jamais vi gente tão rezadeira na minha vida. Todos os agregados do doutor apegavam-se com os mais diversos santos, como quem trava uma luta com foice, enxada, ferrão e martelo – igualzinho aos tempos do Conselheiro, por ocasião da Guerra de Canudos –, na intenção de frustrar aqueles intentos. E que tanto ele quanto o apadrinhado dessem com os burros n’água.
Foram novenas, trezenas, promessas, jejuns e mil outras coisas que, nos dias seguintes, tomaram conta do lugar. A coisa estava quase a tornar-se uma romaria, uma peregrinação à Terra Santa. As rezas sacrossantas eram entremeadas com mil e uma maldições lançadas ao “seu dotô”, ao apadrinhado, aos contraparentes e a toda a árvore genealógica dos Veloso e, de quebra, a todos os integrantes do partido político. Aquela família, por razão de tal fervor, estava prestes a cair na maldição eterna.
Aí pude chegar à seguinte conclusão: se o sujeitinho conseguisse a tal legenda não o seria por disposição divina, seria à revelia ou a contragosto de tal providência. E mais, se a conseguisse, eu próprio não votaria nele.

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