sexta-feira, 23 de outubro de 2009

09 - A ÉGUA PRENHE

sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Bem, culinárias à parte, aquele fim de mundo tinha suas características bem alicerçadas.
A vida ali aprendera, ela própria, a ter uma outra conotação. Todas as verdades do mundo pareciam ali oferecer um novo sabor, uma significação especial.
Isso se estendia a toda classe de ser vivente.
Um desses era Marineta, égua de juízo torto e ideias próprias.
Marineta... Ah! Marineta... Essa égua meteu na cachola que teria um potrinho, entrou no cio porque deu na cabeça e achou por conta própria um cúmplice para ser pai de sua cria.
Enamorou-se de um pangaré, que era uma espécie de Zito Borborema dos equinos e não servia nem para os carrapatos, e lá se foi a dar cabo de seus desejos maternais.
Naqueles dias eu estava em Curiapeba por conta de algumas pendências mal resolvidas. Fui assistido, na ocasião, pelo Dr. Walcírio Toneleiros Waluá, um bom advogado, homem cordato, sensato, sóbrio, sorridente, espirituoso, brincalhão e capaz. Possuía uma extrema facilidade de comunicação e era detentor de uma verve e erudição consideráveis. Pertencia a uma das famílias ilustres da região, os Waluá. Dava aulas na Faculdade PAZ E HARMONIA e era um historiador, conhecia todos os personagens e cada fato ocorrido naquela região, desde “um não sei quando”.
Seu escritório ocupava duas salas no andar superior de um velho sobrado, um antigo casarão, agora reformado, e que tomava conta de toda uma esquina em frente à Praça das Boiadas, nº 08.
Na sua reconstituição, teve-se o excepcional cuidado de preservar cada pormenor da obra originária de primórdios insabidos.
Dizia-me ele que aquela fora uma das primeiras construções em pedra e cal e decentes da cidade e testemunhara toda uma sorte de acontecimentos que assolaram Curiapeba em tempos idos, com invasões de jagunços, desmandos de coronéis, disputas de terras, etc. Cheguei a crer que o próprio Átila teria passado por ali em carne e osso em uma de suas incursões e que Leão I estivera ausente na oportunidade.
Ainda arrematou, dizendo que a mais recente dessas invasões, desta feita por cangaceiros, havia ocorrido no município vizinho de Queimadas, onde Lampião e seu bando, às vésperas do Natal de 1929, entraram na Delegacia, renderam os policiais e mataram todos.
Curiapeba, segundo aquele historiador, deveu seu nome aos Peba, antiga família portuguesa, detentores de grandes porções de terra. Ao nome Peba depois foi ajuntado o nome Cúria, devido aos padres que por cá vinham fazer suas missões e que, de passagem, cismaram em rebatizar as terras, cujo nome até então era “Beleza”, como Curia-Peba. A Santa Igreja abençoou o atrevimento dos santos párocos, travestidos de bandeirantes, e a história a partir de então ganhou um novo rumo.
Falou-me também da mal sucedida intenção da família que, além do campo editorial, encampara a ideia de criar um Banco local de proporções regionais. Confessou em tom de pesar que tudo culminou em uma derrocada espúria e fraudulenta e que o Banco, depois, foi arrematado por um preço vil por um grupo de associados estrangeiros e convertido no hoje conhecido Banco Alfomares do Nordeste Brasileiro.
Bem, o fato é que me dei por contente pelo profissional que me atendia e pelo estudioso e bem orientado senhor com quem acabara de prosear longamente.
Assim, pendências resolvidas, concluímos a conversa, retirei-me agradecido e, ato contínuo, preparei-me para deixar a cidade em retorno à fazenda Rabo de Peixe, para juntar-me aos Bendengó.
Todavia, não me saía da cabeça aquele nobre e austero “Casarão da Esquina” todo vestido de branco, a reluzir sob o brilho do sol sertanejo:

O velho casarão da esquina
Na sua estrutura parece
O ancião que combina,
Uma vida que não termina,
E aquilo que não se esquece

E em seu silencio redobrado,
Na pedra lavada, senhoril,
Remexe às coisas do passado,
E faz da gente um sobrado
Que o não lembrado construiu.

E nesse termo sem lembrança,
O tempo às vezes se retarda,
E traz de novo a esperança,
O encantamento da criança,
Que o ancião inda resguarda.

A caminho da Prefeitura, dei de encontro com Aristarco que vinha com dois sujeitos a tiracolo. Este me apresentou os dois tipos, ambos intelectualóides, ambos poetas. O primeiro, de óculos com aro arredondado, era um tipo posudo e escrevia poesias, próximas ao chinês, já que ninguém as entendia a não ser ele próprio, e que pensava, claro, haver exprimido nelas toda a lógica universal, o suprassumo da sabedoria; o segundo sujeito saiu-me com um modo doido de fazer poesia; que consistia em se escrever tresloucadamente, como se em um tipo de transe mediúnico e onde o escritor deveria verter no papel, irrefletidamente, uma enxurrada de palavras atabalhoadas, sem sentido. Era, em verdade, um atentado contra quem estivesse em pleno gozo de suas faculdades intelectuais.
Diziam ambos serem de uma renomada faculdade paulista. Se existe algum momento em que o estereótipo funciona, o momento era aquele, pois eu seria capaz de apostar uma abóbora peca que os tais eram mesmo de lá.
Em relação ao conteúdo escrito, pra não ser completamente injusto, a princípio tentei entender, depois tentei adivinhar e por fim acabei desistindo.
Acredito que eram discípulos de alguma escola europeia, cujos sujeitos, cansados de escrever, perdem o tino poético e acabam por inventar estilos e tendências para justificar seu palavrório inconsistente e banal. Eles me pareceram, como diria Bendengó, dois grandessíssimos mandriões, uma espécie de classe média falida, desesperados à procura de afirmação.
Por fim disseram que, sob sugestão de Aristarco, gostariam de um prefácio meu para um livro que estavam terminando de escrever a quatro mãos.
Bem... Despedimo-nos. Saí dali para a Prefeitura, para encontrar Macário. Quanto aos dois sujeitos ficamos de ver depois a questão do prefácio. Coisas que ficam para o ad infinitum.
E quanto a Aristarco que havia sugerido que eu prefaciasse aquele Opus Magnum da poesia, pensei: Sujeitinho miserável, esse Aristarco, ele não se mete, mas me enfia em cada roubada!... Uma cumbuca sem tampa, isso sim!...
Não paravam de chegar turistas naquele fim de mundo, naquele buraco de onça. Curiapeba parecia o caminho das Índias tupiniquim.
Meu último compromisso, antes de seguir para a fazenda, seria atender ao convite do professor Macário Ohana Vangélis. Ele desempenhava um bom papel na área cultural de Curiapeba e encampava valorosamente algumas atividades culturais.
Macário, insigne e conceituado professor, membro da Academia Curiapebana de Letras, era adepto do Modernismo (nem tudo é perfeito), e tinha um talento natural para as artes, seus escritos tinham a rara beleza do inusitado, do surpreendente, do eloquente.
Naquela oportunidade, ele desenvolvia um projeto com artes cênicas com um cineasta da capital paulista. Seus ensaios de Cinema Novo prometiam criar o pós-moderno das artes visuais, tracejar o cinema do assombro, etc. Seria, talvez, mais um dos malfadados rebentos que se seguiriam à Semana da Arte Moderna.
Esse era Xandão Cosanostra, um baixinho que equilibrava sobre os ombros uma cabeça cheia de ideias. Macário nos apresentou e o seu Cinema do Espanto era uma coisa meio doida, mas interessante e, sem dúvida, revolucionária.
Comprometi-me com ambos a retornar para a apresentação de O Grã-Cão do sertão, despedimo-nos e fui-me.
Fazia já duas semanas que me ausentara. Uma vez na fazenda, fiquei sabendo das peripécias de Marineta e tudo, claro, pela boca de Filó que se referia à égua como quem falasse de uma amiga, uma parenta. Comentava suas aventuras como se fossem arroubos passionais de adolescente. De adolescente Marineta não tinha nada.
Resultou que, após várias cercas puladas, idas e vindas, lá estava Marineta prenhe e, com ela, Filó, que não arredava o pé para nada, era toda cuidados para com a égua. Óbvio que não existia ainda o mínimo indício da prenhez, que estava prenhe era sabido, todavia as suas formas físicas ainda não o denunciavam e muito tempo se passaria até que o fizessem.
Quando Filó se atirava de corpo e alma aos bordados, podia o mundo se acabar ininterruptas vezes. Sua compenetração era tamanha que tecido e artesã se fundiam no bordado. Ambos se justapunham em uma mesma e única formação atemporal.
Boa parte do seu dia, quando não estava junto a Marineta, era a isso dedicada e sua criação era, invariavelmente, bela.
Não era então apenas um ofício, não!... era mais que isso, era o modo como expressava tudo de si.
Ela ficava ali, sentada sobre as pernas, horas a fio e eu, vez ou outra, quando o tempo o permitia, ficava de um canto, calado, ora observando, ora lendo, mas sempre atento ao significado de tudo.
Por vezes, de entreter-me observando-a em sua arte, sentia-me eu próprio como o Tecido Bordado, nem mais nem menos...

Me sinto como um bordado,
Que, preso ao pano de chão,
É só um motivo decorado,
Onde os outros pisarão.

E no contraste agressivo,
Com tudo que não se baste,
Os opostos eu revivo,
Na nobreza deste traste.

Assim no nefasto, imundo,
Viés da peça de linho,
Compreendo um outro mundo,
E me torno mais sozinho.

Na oportunidade, eu relia o livro Solilóquios do nômade Ibrahim Ibiza, depois de longo afastamento das páginas escritas. Aquela releitura contribuía para meu estado de circunspeção.
Por essa mesma época, tive contato com a obra de dois ilustres escritores de Lençóis, cidade vizinha a Curiapeba, Urbano Duarte e Afrânio Peixoto. Este último, além de escritor excepcional, era médico de um raro talento e foi o próprio que, por ocasião da morte de Euclides da Cunha (1909), fora chamado a examinar o corpo do desditoso escritor assassinado e emitir o respectivo laudo.
Lia também, tomado por empréstimo de Aristarco, Capistrano de Abreu e seu “Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil” e terminara recentemente outros três: O diário lírico Poesias Tristes de Marcus Di Philippi; os Diálogos Curtos e Extensas Reflexões, e Diálogos Filosóficos, estes dois últimos de Paulo Moriassu Hijo, com quem me havia encontrado, em minha chegada a Curiapeba, e que me enviara da capital paulista seus dois livretos.

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