“... isto é sertão, isto é Brasil, isto é nossa gente!... uai, sô!...”
Aristides Theodoro
Depois dos entreveros com Dona Lina, instaurou-se uma época de paz e sossego em meus desalentados dias.
Acabaram-se as “trombas d’água”. A terra estava gorda, agradecida e oferecia suas bênçãos ao mundo dos viventes.
Curiapeba ainda se refazia dos estragos provocados por aquelas chuvas, sobretudo em algumas regiões específicas.
Haviam ficado para trás as manhãs cinzentas e cansadas. A brisa amena invadia os campos. Era uma imagem parada, além do tempo, apenas parada, sem motivo.
Bendengó já tinha rumado com seus apetrechos, fazenda afora. Os demais estavam dando comida aos bichos ou ordenhando as vacas.
Meu compromisso, naquele dia, seria o de concluir alguns artigos para um jornal do sul. Filó, entretanto, achou de convidar-me a ir com ela ao Itiúba, levar uma encomenda de seus bordados. Assegurou-me ser aquela a oportunidade de minha vida, em que eu conheceria uma região além do imaginável, encantadora, o paraíso na terra.
Pra falar a verdade, não estava nada interessado naquela viagem, mas com ela iria ao lugar que fosse.
Itiúba ficava a poucas léguas de Curiapeba, e por lá já havia eu passado quando de minha chegada à cidade.
Poucos eram os meios de transporte e o mais eficiente deles, a ferrovia, que ligava o litoral com o interior do estado, não chegara a Curiapeba.
Seguimos com Marineta, uma égua de propriedade do Dr. Veloso. O percurso era um misto de encantos naturais e estradas poeirentas e tortuosas.
No caminho topamos com uma boiada, dessas que levam metade de um dia pra atravessar a estrada. Eram bois do Coronel Dromedário Carmelinho, destinados à Feira de Santana e denunciados pela marca DC gravada no lombo dos bichos a ferro quente. Carmelinho era um homem de posses, dono de uma carranca de dar medo e de uma personalidade impossível de descrever. Tinha o olhar de boi furioso e um sorriso cínico. As suas intenções eram como tatu entocado: desconhecidas e imprevisíveis.
Com pouco tempo chegamos.
A casa da anciã ficava em um vilarejo centenário, pintado a sete cores no sopé da serra do Itiúba, de nome Arruado do Brotas e antigamente conhecido como Eiras dos Pebas. O tal lugar era algo além do imaginável.
A velha aguardava-nos à porta.
Se alguém nunca bebeu um suco de cajá-manga na vida, considere essa uma recomendação. Aquela senhora tinha mãos para a cozinha como ninguém. Morava sozinha, seu marido foi-se como aventureiro pelas Lavras Diamantinas, em busca de fortuna, nunca mais retornando. Diziam ter ele perecido em uma luta brutal com um tal de Marroás. Outros diziam que fora comido por onças, o bicho mais abundante e temido naqueles fins de mundo.
Não tiveram filhos e sua única companhia era a solidão, os quitutes, o silêncio da serra e Filó que sempre a visitava.
Ficamos para almoçar, sim senhor, e ninguém me demoveria daquela intenção quase pecaminosa. A comida oferecida por ela não me escaparia nem sob torturas. Tínhamos lá, à nossa disposição, um cardápio posto entre o apreciável e o irrecusável, encabeçado por ensopadinho de cobó e galinha d’angola à cabidela.
Nunca tinha comido nada parecido. Aquela mulher, ao fogão, parecia não cozinhar e sim reger uma orquestra, coro e vozes. Entretanto, a velha era um tanto inconveniente, já que perguntou à queima roupa se eu e Filó estávamos namorando. Foram dois rostos vermelhos, duas vozes engasgadas e duas respostas sem sentido. E a danada da velha ainda arrematou: “Ah, eu sei, conheço bem disso. Sei muito bem como é!...”. Não entendi nada de suas afirmações, mas não discordaria de alguém que me dera para comer ensopadinho de cobó e galinha à cabidela, acompanhados de suco de cajá-manga. Ficou o dito pelo não dito, nossas intenções não foram sabidas nem reveladas. Ela brindou-nos também com suas histórias de homens valentes e aventureiros desbravadores daquela região.
À tardezinha nos fomos com a promessa de um retorno breve.
Nos dias que se seguiram pude conhecer, de per si, um pouco mais dos encantos da região, desta vez sozinho.
A Chapada Diamantina baiana é de uma riqueza natural assombrosa. Sua formação consistia em um extenso planalto com picos elevadíssimos e uma paisagem extremamente heterogênea.
Já não mais havia a abundância dos preciosos minérios. O ciclo da mineração havia encerrado suas atividades no começo deste século (XX), com o esgotamento das jazidas. Entretanto, a exuberância permanecera no lugar, o encantamento, o inexorável jamais se esgotaria. Aquele lugar com seus cânions, lagos, rios, pássaros de variegadas cores e trinados e tantos outros animais e belezas naturais não seriam vistos em outro canto do mundo, estou seguro.
* * *
Nas idas e vindas ao Itiúba travei conhecimento com grandes pessoas daquele lugar. Itiúba, cidadezinha pacata, um fim de mundo, era menor que Curiapeba e apresentava algumas diferenças culturais com a precedente. Dentre estas diferenças, estava um, quase natural, gosto pela leitura e pelas artes. Conheci alguns intelectuais, participei de algumas discussões acerca do Modernismo, proeminente movimento paulista, que pendia pela redefinição do conceito artístico, do qual eu não era um devotado partidário. Acreditava que os bons rebentos desse movimento cultural haviam sido Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia com seu Juca Mulato e Raul Bopp, os demais eram questionáveis. Opiniões à parte, as reuniões ali eram sempre interessantes.
Em certa ocasião conheci um grande amigo de Aristarco (aliás, todos eram amigos de Aristarco, que apesar de sua constante acidez, parecia ter amigos em todos os lugares e ocasiões), o seu nome era Antão Calasans, homem sóbrio e de grande discernimento, jornalista e dono do jornal A Voz do Sertão. Na minha entrevista com Calasans, colhi interessantes observações sobre A Coluna Prestes e suas consequências nefastas para a região.
A arte dispensa formalidades e apresentações, pude enriquecer meus conhecimentos nas poucas palavras trocadas com aquele senhor. Fez ele o irredutível obséquio de apresentar-me a outros mais da cultura da cidade, igualmente em visita no A Voz do Sertão. Fiquei algo entre boquiaberto e confuso ao saber que alguns deles haviam lido alguns de meus artigos.
Antão, inteirado de minha experiência n’ O Diário da Capital, não viu inconvenientes em convidar-me para ser colunista naquele jornal e cuidar de uma oficina de literatura, comandada pelo próprio e encabeçada pelo escritor Ubirajara Godoy Bueno. Notei que os demais me olhavam com assentimento e apenas dei-me total conta da situação e do ocorrido quando soou a última nota, aguda e preocupada, do meu “sim, aceito com prazer”.
Por que as pessoas de uma cidadezinha qualquer perdida nos socavões do Brasil acreditam que nós, saídos das grandes cidades, sabemos tudo, ou sabemos mais? Bem, eu também não tenho a resposta...
Confesso que não pus atenção a mais nada do que se passou, sentia-me como se estivesse casando naquele momento e saí dali com os ombros arqueados por uma responsabilidade que tentava evitar desde a saída de O Diário da Capital, em São Paulo.
Pensava, contudo, não sei se para o bem ou para o mal, estar sendo útil àquele senhor. A necessidade de ser útil sempre norteou meus sentidos e, de quebra, meteu-me em boas enrascadas.
As horas se passaram numa procissão de sombras sonolentas, vultos diversos, velhos fantasmas do passado que traziam à minha mente as picuinhas, o proselitismo exacerbado, o aviltamento da arte, as invejas, as mazelas, amizades destroçadas e o diabo a quatro. Tudo isso se passava naquela noite em que o sono escolhera a cama do lado para dormir. Temia que tudo isso voltasse e que eu me visse novamente aprisionado e envolvido até a medula numa rede de revanchismos, despeitos, mentiras e coisas que os valham. O peso, a responsabilidade e suas consequências me aterrorizavam profundamente.
Finalmente uma voz salvadora surge do nada e diz:
– Quer um cafezium? Fiz agorinha, tá quentinho!...
Então respondo:
– Sim, quero, quero sim... Mas com pouco doce...
O sol tinha raiado no meu entendimento. Estava ficando zureta.
Nos dias que se seguiram pude antever com maior clareza a situação e o quão diferente parecia ser dos tempos idos na capital paulista.
Bem, no frigir dos ovos, me dei bem e, ao final das contas o diabo não era tão feio como quis parecer. Todos, do faxineiro ao dono, estavam irmanados num só propósito, era uma família, da qual, agora, eu fazia parte.
Antão deveria ser beatificado em vida (teríamos que propor isso com urgência), deu-me praticamente a chave de seu jornal, como quem diz “é seu, meu filho!” ou “eu confio em que farás um bom trabalho”, coisas não ditas, mas perfeitamente entendidas.
Minhas idas a Itiúba teriam, a partir de então, que ser frequentes, quisesse eu ou não e, bem... Na verdade eu queria.
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