Era uma manhã como nenhuma outra. Essa era uma característica naquela cidade: os dias nunca eram iguais.
Bendengó convidou-me para acompanhá-lo à cidade.
Íamos à agência dos correios com algumas correspondências para o Dr. Veloso.
Chegamos ainda com os primeiros raios de sol.
Pendências resolvidas, Bendengó achou de apresentar-me a um, segundo ele, renomado escultor da região.
Chegamos e, após as apresentações, entabulamos uma boa prosa sobre sua arte.
Sua oficina era modesta e acolhedora, era uma espécie de ventre, onde a criação operava prodigiosamente através das mãos simples e devotadas daquele septuagenário.
Aureolindo Taramela Quinto era o quinto dos doze filhos de Seu Custódio, que veio ter em Curiapeba nos tempos do garimpo, quando a valentia era uma espécie de moeda corrente na região. Seus antepassados haviam sido escravos dos Alcebíades, trabalharam, ali naquela mesma região, na mineração e na agricultura. Foram trazidos por conta da descoberta do ouro, em fins do século XVIII, ao mesmo tempo em que se deu na região uma espécie de febre colonizadora motivada pelo nobre minério e pelas ganas de riqueza.
Com o passar dos anos, e por dispor de um talento natural, Aureolindo e o irmão Fortunato foram trabalhar na Olaria de Indumentário Venceslau Carmelinho, a quem chamavam, não sei por quê, de Seu Gimenez. Adquiriram por lá todo o conhecimento para o trabalho com barro e argila, mas, somente mais tarde, Aureolindo (agora sozinho) dedicou-se à arte dos adornos e aos finos trabalhos com o cinzel e, posteriormente, ajuntou a isso seus dotes na ourivesaria e no artesanato fino.
Trabalhou na única marmoraria da região e, assim, pôde contribuir na rica arquitetura patrocinada pelas pepitas de ouro dos abastados coronéis, travestidos de mecenas. E foi trabalhando sob encomenda destes, da igreja e do então prefeito que pôde ele sustentar-se e ganhar relativa fama.
Curiapeba ganhou prestígio e perfeição a partir daquelas hábeis e rudes mãos.
Suas mais memoráveis obras eram: o chafariz da Praça das Boiadas; o arco da Igreja de Senhora Sant’Ana; o interior e as iluminuras da igreja do padroeiro São Roque, na Praça dos Jatobás; o monumento “O Garimpeiro”; fachada e balaústre do Velho Cadeião; os ornamentos da casa do Coronel Salustiano da Conceição; algumas peças em mármore e pedra sabão para o Coronel Esmeraldino Trancoso e o detalhamento de uma série conhecida como “Fachadas Ornamentais” para várias casas próximas à Praça das Boiadas, incluindo o prédio do escritório de Advocacia do Dr. Walcírio Toneleiros Waluá; a abóbada e a sacristia da igreja de Senhora de Sant’Ana; e, finalmente, a reforma dos afrescos “Os Boiadeiros” e o conjunto conhecido como “A Natividade do Senhor Bom Jesus”, no centro da Praça.
Aureolindo dedicou-se também à confecção de ladrilhos, azulejos e pisos de ricos traços e simetria, que enriqueceram a bela decoração dos átrios da Faculdade PAZ E HARMONIA e do Museu HISTÓRIA E ARTE DA CHAPADA.
Aqueles eram, entretanto, dias conturbados. A região crescia e se desenvolvia, os coronéis ficavam mais abastados e as gentes ficavam mais pobres. As bases da economia, além dos tradicionais milho, mandioca, feijão, estavam agora calcadas no algodão, em frutas nativas como o caju, o umbu, a mangaba, a pitanga, o araçá, o marmelo, o cajá, em frutas não nativas como o coco (adaptado à região), a manga, a graviola, a jaca, o cacau, e ainda no tabaco, na cera de carnaúba, nos óleos de mamona, babaçu e de oiticica, e em fibrosos como o caroá, a piaçava, a pindoba e o sisal.
O sisal, de origem mexicana, havia sido introduzido recentemente na região por um grande empreendedor, a princípio nos municípios de Madre de Deus e Maragogipe.
Posteriormente o vegetal veio a desempenhar um papel fundamental para a economia da região. Ele trouxe consigo as cercas demarcatórias de propriedades e uma incontável série de possibilidades, através da utilização das fibras que transformavam-se em cordoaria.
Rivalizavam com ele as lavouras fumageiras do Recôncavo Baiano, que davam ao estado a notoriedade de grande produtor e exportador de charutos. O berço desta atividade encontrou lugar, principalmente, além de Maragogipe, nos municípios de Alagoinhas, Cachoeira, Muritiba, Cruz das Almas e São Félix.
Os abastados coronéis e politiqueiros não dispensavam seu charuto fino e assim a indústria do tabaco tornara-se o sustentáculo econômico daquela região.
Tudo se converteu num hábito social, pois comumente se viam aqueles abastados latifundiários, donos de engenho, pecuaristas, etc, terem suas prosas mergulhadas nas silenciosas baforadas de um Regalias ou de um Suerdieck.
Mas tudo ainda estava voltado para o garimpo que, embora já agonizante, conservara ainda as marcas de gloriosos tempos.
O ciclo do ouro havia mudado completamente a política por aquelas bandas.
Os candidatos à fortuna reuniam-se na Praça das Boiadas, embrenhavam-se mato adentro e só retornavam dias depois para negociarem seu rico filão. Esses retornos eram sempre esperados e, via de regra, seguiam acompanhados de grande comemoração, regada a catiloia, baião e forró.
A riqueza havia invadido a região, eram épocas de muitas festas, fossem estas promovidas pela elite do gado e do ouro ou fossem festas populares e tradicionais, como as micaretas.
Quanto ao grande Escultor, Mestre Aureolindo, mesmo tendo para si a honra e a glória de contribuir com sua arte para o engrandecimento daquela região, continuava pobre, simples e tranquilo, e quando alguém, admirado por seu talento, lançava-lhe um elogio, ele contestava:
– Meo fio, Deus feiz, Deus criô, eu cinzelo!...
Havia nas palavras daquele homem um quê de sobriedade filial.
Suas palavras eram sinceras.
Quando saímos de Curiapeba, retornando à Rabo de Peixe, estava um sol de rachar mamonas, algumas nuvens nos olhavam em tom carrancudo e ameaçador.
Estávamos entrando em março. O período de chuvas daquela época do ano era chamado de AS AGUADAS.
Cada poesia é só a gota
De uma chuva torrencial,
Que umedece a telha rota
E nunca é especial.
Pois, em tudo que escrevo,
Todo ponto se assemelha
À umidade em relevo
Que consome cada telha.
E a chuva quando para,
No telhado umedecido,
Tem então a mesma cara
Daquilo que foi escrito.
Muitos, próximos a mim, diziam: “o mês de março promete, o mês de março promete, março promete...”. O que ele prometia eu não tinha a menor ideia, mas já estava convicto de que cumpriria. Dito e feito, o mundo desabou em chuvas, eram águas que Deus mandava pra todo lado. Um mundaréu absurdo de águas, resolvido a acabar de vez com a seca do sertão.
Curiapeba se transformara num flagelo vivo, os rios subiram, as vazantes transbordaram, as inundações e suas temíveis consequências eram visíveis em todas as partes. A mais atingida fora a região ribeirinha do rio Canjica, na vila do Alvaiade, próximo ao cemitério da Paz Eterna. Curiapeba estava em polvorosa.
Na fazenda, construída em um planalto, não sentíamos este grau de calamidade.
Por outro lado, em detrimento das agruras por que passava a região, os benefícios da chuva são impressionantes, o maior deles é o de unir as pessoas. Haja vista que Bendengó, por conta disso, reunia a esposa Fonfonfira, os filhos e netos, e eu de quebra, e dava contas de abrir a sua “trambelice” de causos e mais causos, uns reais, uns alegres, outros tristes, outros inventados e, na maior parte, todos eles absurdos.
Sentávamos sobre uns tamboretes, outros se ajeitavam sobre alguns tocos ou bancos de madeira, todos próximos à fogueira, e então o cabra destrambelhava a contar, a gesticular e fazer força como se fosse partir para o enfrentamento, ele próprio, de seus personagens invisíveis.
Sentados, entre os demais, eu e Filó ouvíamos tudo, atentos aos mais ínfimos detalhes. Não é preciso dizer que, vez ou outra, o velho Bendengó tinha o despudor de forçar-me a dizer algo sobre literatura, recitar poesias ou falar de minhas experiências na cidade grande.
Entrementes, aqueles se tornavam momentos de indescritível preciosidade e traziam-me sempre à memória os tempos idos de meu pai, no engenho dos Torquato, nos grotões da Zona da Mata Mineira, quando as estórias da Besta-Fera, Papa-Figo, Cabra-Cabriola, Barba-Ruiva, Mula-sem-Cabeça, Lobisomem, Saci-Pererê, e não sei quantos tinhosos mais brindaram-me com noites e mais noites de insônia, atracado a um medo descontrolável, levando-me a buscar refúgio no silêncio consolador de minha mãe que parecia estar sempre inteirada de meus medos sem a necessidade d’eu dizê-lo.
Bendengó nada tinha de meu pai ou mãe, porém era dotado de uma imaginação assombrosa para contar aqueles causos do “Arco da Veia”.
Filó, com um sorriso enigmático, me olhava silenciosamente, como quem diz: “ele é assim mesmo” ou “vá te acostumando”.
E lá estávamos nós...
Uma dessas estórias, ditas à luz da lamparina, lembro-me bem, falava de um fato ocorrido nas brenhas da Serra do Itiúba e envolvia uma família de posses daquela região.
Começava ele, Bendengó, suas estórias sempre assim: “Assunta aí, meus fio. Esse causo se passô...”
Todos escutávamos Bendengó, sem pestanejar e, dentre todos que o ouvíamos, sempre estava presente Sá Colodina, uma espécie de mãe preta, mãe de todo mundo, que era toda ouvidos. Trazia no canto da boca um cachimbinho de barro, um pano branco enrolado na cabeça de algodão e os olhinhos semifechados. Abençoados olhos de quem havia declarado paz ao mundo.
Ela era uma ex-escrava, de origem ignorada e cuja idade nem Deus sabia. Tinha a quase centenária paciência das pessoas que já viveram o bastante pra não terem pressa. Gostava de estar no meio das gentes, gostava de contar suas estórias e gostava de ouvir as de Bendengó.
Sua cabeça de algodão e seu sorriso de quem via graça em cada coisa escondiam a memória da sucessão de coisas passadas naqueles recantos. Quando ela abria a boca pra relatar suas histórias, era como se um livro fosse aberto e tudo ao redor parecia calar-se pra escutá-la. Não tinha nada pra deixar ao mundo, nem netos, nem filhos, nem parentes; só a memória de um passado, preso ao fio de linha de sua tênue vida.
Aquelas eram cenas raras, belas, inquietantes. E eu, afortunado pelo destino, convivia com pessoas que viviam a vida no seu todo.
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