sexta-feira, 23 de outubro de 2009

02 - FILOMENA CARRANCA BENDENGÓ

sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Já era fim de tarde.
No fogão a lenha, alguns tições mornavam a água para o banho. As brasas incandescentes afastavam o entardecer frio e enchiam de magia a noite que se aproximava.
Era convidativo e agradável o aroma que surgia da lenha queimada e dos vapores das panelas. Os últimos raios de luz despencavam-se no horizonte para embrenhar-se no colo suave da noite. A brisa vespertina prenunciava uma noite calma. Surgiam ao longe as primeiras estrelas, desenhadas no firmamento como se fossem rabiscos da mão de Deus.
A noite parecia reconhecer o cansaço do homem do campo, vencido pelas agruras do dia e não lhe impunha mais nada. O dia fora todo dedicado à lida no roçado, pois, de extensa, a fazenda consumia-nos todo o tempo.
As plantações de jaca, manga, aipim, milho, feijão, batata-doce, mandioca, etc., contribuiriam para o sustento da casa.
Foram boas as colheitas naquele ano. Os mantimentos enchiam as tulhas, a despensa, o paiol. Uma parte considerável da lavoura, como sempre, seria destinada ao comércio.
Em dias de feira, Bendengó era todo cuidados. Preparava-se com exagerado esmero. Era metódico e agia como se em uma espécie de ritual, depois atrelava os animais e rumava para a cidade. Com ele ia Filó e, vez ou outra, eu.
O velho tinha um lugar reservado aos sábados na tradicional feira da Praça das Boiadas, no centro de Curiapeba. Ali montava a barraca para negociar seus mantimentos, queijos, manteiga, mel, manga, jaca, etc.
Embora fosse grande a procura por mantimentos, sal, rapadura, azeite, e outros gêneros, alguns pescadores, a exemplo do velho e bondoso Jequetiá Elisindro da Conceição, dedicavam-se ao comércio de pescados. Os peixes eram apanhados ali mesmo no rio das Voltas, no Canjica e rio da Onça, que ficavam próximos dali. Esse era um excelente pescador, bom homem e péssimo comerciante. Tudo o que dizia pra oferecer seus pescados era: “A u pexe, Ó u pêxe, A u pexe!...”
Os rios ofereciam abundantemente sua farta variedade de peixes, dentre os quais o tucunaré, o pintado, o mole, o cobó, o bagre, o mandi, o dourado, a traíra, etc. Alguns desses rios eram o sustentáculo da vida em várias cidadezinhas da região.
Agregados de pequenas fazendas e outros moradores também lucravam com a feira. Era o caso de Odilon Pederneiras Castrado e seu comércio de artesanatos. Odilon, além dos dotes para alcoviteiro-mor, possuía inegáveis habilidades para a confecção de esteiras de palha, balaios de taquara, embira e cipó, redes de sisal e linho, e uma infinidade de peças de fibra e de algodão cru e caroá.
A região, aliás, era uma grande produtora de algodão e de fibrosas, principalmente o sisal ou agave, de onde surgiam os fios, barbantes, cordas, cordéis, tapetes, sacos, bolsas, chapéus e uma interminável série de artigos de artesanato que, nas mãos de Odilon, ganhavam vida.
Havia também os trabalhos em couro, como as alpercatas, os gibões, as bolsas, celas, cordas, perneiras, sapatos, cintos, relhos, arreios, guarda-peitos e chapéus. A matéria prima era de origem bovina, suína e caprina, fornecida por Clavicórdio Tenório Suíno dos Ovos Sujos, um negociador sagaz que movimentava, sem exagero, mais dinheiro que o Banco Alfomares. O couro mais apreciado, entretanto, e também o mais caro, provinha do mateiro, uma espécie de veado campeiro largamente encontrado da região.
Em outras barracas, dava-se uma espécie de “troca-tudo”, “feira da barganha ou do rolo”, onde tudo era possível, podia-se adquirir desde uma máquina de plantio até um prego enferrujado.
Havia também os “Poetas de Feira”, como eram conhecidos por lá. Eram repentistas, trovadores, cordelistas, cantadores que exibiam seus improvisos ou vendiam os seus livretos. Estes ficavam dependurados em um extenso fio de sisal (o cordel), daí o nome “Literatura de Cordel”, como vim a sabê-lo mais tarde. O autor fazia uma prévia de sua obra cantando e declamando. Não preciso dizer que li quase todos aqueles cordéis. Havia também os cantadores de “embolada”, como o nome já diz, às vezes não se entendia nada, nem os próprios cantores, suponho, eram capazes de decifrar aquilo que cantavam.
Entre as pessoas que marcavam ponto por ali estava Jota Caveira, um sujeito de caráter indefinido, e o tarimbado e provocador poeta Zeca Brotoejas, um intelectual que suportava o peso do mundo sobre a “cacunda magra” e de suas declamações, regadas a catiloia, surgiam coisas como o seu “Corrupião”, no qual eu fiz o favor de dar uns pitacos e Talinho Malino de Menezes musicou:

A terra trama e reflete
Um canto negro: Escuta,
Que o chão ferido repete
É a morte vencendo a luta

E o tempo vira um espaço
No embocadouro servil
Que contrapõe-se ao compasso
Do canto que se ouviu

E é isto mesmo, assunta
Menino que o mundo vem
Levar-te a uma pergunta
Que u’a reposta não tem

Travei com o Brotoejas umas “profias”, certa vez, nada de importante, perdi feio.
Mas, bem, o ponto, eu diria, alto, daquela feira, era a barraca de Filó. Uma grande banca de artesanatos, onde ela expunha várias peças ornamentais, xilogravura, pintura sobre telha; enfeites e trançados em fibra de coco e embira de bananeira e, o mais apreciável, os trabalhos em tecido: panos de prato, tricô, crochê e os bordados. Seus dotes eram conhecidos e apreciados por toda Curiapeba.


* * *

Filomena Carranca Bendengó, ou Filó, valia, em verdade, mais que o prometido por sua bela aparência. Suas características faciais graciosamente negras não denunciavam, certamente, em nada, os traços do pai, pois este, embora dono de porte físico e tez joviais, não lembrava, de longe sequer, os belos traços da filha.
Filó se assemelhava a uma fidalga africana. Era de uma estatura mediana, olhos negros e espertos, corpo esbelto, mãos finas e delicadas, nariz acentuado e lábios salientes. Possuía a delicadeza de uma gueixa negra e a simpatia de uma cortesã. Seus olhos revelavam o não dito pela boca.
Era uma mulher em tudo, no sentido máximo da palavra.
Havia concluído seus poucos estudos ali mesmo em Curiapeba.
Diz-se a boca pequena ser prudente desconfiar de uma mulher que revele a idade e, igualmente prudente, duvidar quando a esconde. Filó não tinha esse problema, sua idade estava estampada no rosto, não precisava dizer ou esconder nada. Tínhamos lá uma diferença de idade, algo entre oito e nove anos.
Desde o início, ela nutrira por mim certos sentimentos aos quais confesso haver correspondido, a princípio, despretensiosamente e, ao final das contas, com as maiores pretensões do mundo. Se ia dar em algo não sei, mas eram momentos de indizíveis promessas e de uma rara ternura.
Havia entre ela e Maninha uma diferença que despencava para o absoluto, pois a segunda, em não raras oportunidades, tinha a delicadeza de uma bigorna e rasgava o verbo sem nenhum pudor. Era simpática quando queria, e quase nunca se dava a este luxo.
Filó, ao contrário, em toda sua pureza, era capaz de observações que, a rigor, me deixavam perplexo. Tinha ela aquele raro talento conferido pela sobriedade às pessoas cultas. Esta era a prova irrefutável da diferença abismal entre o intelectual e o culto.
Pareceu-me ser o agreste um professor de notável e confessa maestria e ela, uma dedicada e excelente aluna. Podemos ajuntar a isto suas qualidades naturais para as artes – era uma perfeita artesã – fazia lá suas pinturas, moldes em cerâmica, alguns desenhos, onde retratava encantadoramente a arte nordestina, além de costurar, bordar, etc.
Em breves e preciosos momentos, servi-me das observações de Filó, que tinha, para tudo, uma sugestão sensata.
Era eu ainda um convicto partidário do augustianismo. Conservava em mim, vítima confessa, uma quase febril atração pela poética de Augusto dos Anjos, quer fosse por seu lirismo excepcional, ou pelo anseio metafísico.
Havia um algo em tudo aquilo que me arremetia a uma leve “Tristeza”:

A tristeza é uma neblina
Estreita que acotovela
Na lembrança longa e fina
A imagem surgida dela.

E, na rua sempre fria,
Transcorre o dia molhado,
Em resposta que não sabia
Ao algo não perguntado.

E de assim, quase surpresa,
No instante que antecede,
Em uma tal delicadeza,
Como alguém que se despede.

Ocorre que nunca tive grandes pretensões literárias. Estes sentimentos, de gênio literário, tiveram vez, sucumbiram e foram enterrados ainda na adolescência. O único sobrevivente em mim era o gosto pelo sublime, pela arte. Vêm-me à memória trechos do livro Solilóquios, escrito pelo nômade Ibrahim Ibiza:
"... toda poesia, antes de pertencer a um poeta, já existia. Era uma entidade viva. Enamorou-se de um poeta e por ele foi roubada, num ato tresloucado de puro amor. Pela mais pura e ébria paixão... E antes de que por ele fosse tocada, existia em si mesma..."
”A poesia pertence ao poeta até o momento em que é escrita, a partir daí ela pertence a quem lê.”
“Se tu houveres de ler-me, faça-o com a mesma intensidade com que escrevi. Se não fizeres assim, a poesia te será boa ou ruim, mas não será poesia. Eu escrevi com a alma, não me leia com os olhos.”
Pela tardezinha, retornavam Bendengó e Filó, extenuados e trazendo consigo o cansaço acumulado durante o dia.
Depois de um banho e de uma boa ceia, lá íamos nós prosear até quando o sono rompesse nossa inútil vigilância.

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