sexta-feira, 23 de outubro de 2009

01 - DAS BRENHAS DO FIM DO MUNDO OU ONDE FICA CURIAPEBA?...

sexta-feira, 23 de outubro de 2009
     Nos desrumos sacolejados desta vida, sobrou para este escriba a desdita, o infortúnio de ver-se metido, sem norte, paradeiro ou rumo, e quantos sinônimos forem, às beiras da serra do Itiúba, na Chapada Diamantina baiana, engolindo poeira, cheirando estrume de animais e com o focinho embicado para o incerto das direções.
     Seguia a direção do vento, pela necessidade de defender-me da poeira assoladora que parecia buscar-me, intencionalmente. Se “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” eu não sei, todavia asseguro: ao menos o daquelas paragens come um pó danado.
     Viajava a pé, em carro de bois, carroça, lombo de burro, etc., tudo o que queria, em verdade, era sair voando daquele fim de mundo com uma urgência inadiável.
     Tudo na vida tem um fim e, finalmente, fui parar em um lugarejo que, segundo me disseram, chamava-se Curiapeba; isso lá pelas seis da tarde, após longas horas de poeira na cara e numa quebradeira de dar dó. De imediato meus ouvidos distinguiram o que parecia ser um denunciador badalar de sino. Eram mesmo seis horas.
     Confundia-me as ideias o fato de eu, um almofadinha confesso, sem nome, com a algibeira furada e cujos únicos pertences eram rabiscos literários, esboços de poesia, estar ali, naquele fim de mundo.
     Bem, recordações à parte, lá estava eu, depois de um sôfrego jantar, composto de pescados da região e ovos cozidos, devorados atropeladamente, na mesa do bar dum certo João Emílio Krauser, que, insistentemente, pedia que eu experimentasse uma tal catiloia, bebida típica, feita pelas calejadas mãos daquele povo, de notável e apurado preparo e de um esmero quase artesanal. Não cedi, como é óbvio, e consegui arrancar do mal-intencionado a informação de onde poderia pernoitar com pouco dinheiro e com a devida segurança; o tal indicou-me um hotel de nome Toco Preto & Barroalto como sendo o mais apropriado. Despedi-me do cortês e mal-encaminhador senhor, que queria me enfiar catiloia goela abaixo, e lá fui para o repouso dos justos.
     Aquela bebida, entretanto, deveria ser algo além do fabuloso, pois todos a bebericavam. O único a destoar da comitiva local, pois denotava ares de turista, era um japonesinho que, depois vim a saber, chamava-se Paulo Hijo, o qual observava mais do que gastava, não bebia nada, conversava um pouco e a tudo era atento, uma espécie que leva à falência qualquer bodegueiro. Travei certa amizade com o oriental, dono de uma impressionante lucidez literária e, segundo penso, pertenceria, um dia, certamente, à seleta classe dos homens cultos do país.
     Em toda cidadezinha interiorana ocorre um fato impressionante, o de todo mundo cumprimentar todo mundo. Assim, no caminho entre o bar e o hotel, cumprimentei tudo quanto era gente.
     O Hotel era simples. Fui atendido por uma espécie de gerente improvisado, e cujo único interesse, acreditei, era o de saber se eu poderia pagar pelo pernoite já que minha aparência não despertava nenhum ânimo. Fechei um acordo considerável com aquele rapazote, cujo nome me foge, tomei um banho, fui descansar.
     O melhor, entretanto, aguardava-me. Varei a noite em luta corpórea com sanguinárias muriçocas e, em plena madrugada, regada a suor e insônia, covardemente surrado por aqueles seres quase invisíveis, me perguntava: Onde, diabos, fui meter-me? Eu, um ex-colunista e colaborador de vários jornais na capital paulista, que tive, engasgados em minha genealogia, avós e bisavós donos de vastas propriedades na zona da mata, nas Minas Gerais, possuidores, além de terras a perder de vista, de cafezais, plantações das mais diversas, rebanhos e mais rebanhos de equinos, caprinos e bovinos! Quem não conhecera em tempos passados a fama e poderio dos Torquato Velho? Eu, educado nos rigores do classicismo, por um pai enérgico, de moral inabalável e circunspeto professor! Eu, cujos ascendentes fizeram época, inclusive nas letras – cuja paixão herdei –, eu, um sopa-rala da família, lá estava. O certo na verdade é: escrevia, sobrevivia de meus escritos, não tinham eles nada de raro e isso eu já sabia, não ganharia jamais nenhum Nobel, mas escrevia, fazia poesias, se alguém as lia, essa é outra história. Escrevia, independendo de quem se desse ao luxo de ler-me, com o clássico rigor dos eternos perseguidores da perfeição, buscando o aprimoramento no glorioso mundo das escritas.
     Naquele momento, porém, isso não importava em nada, estava sendo devorado vivo por batalhões de muriçocas e, conjecturo, àquela altura, eram já verdadeiras irmãs consanguíneas, posto que houvessem se deleitado e banqueteado deste liquido avermelhado abundante em minhas veias.
     Aquela era uma noite que prometia se arrastar pesadamente sobre meus ombros.
     Contrastando com o zumbido quase ininterrupto daqueles monstrinhos, ao longe se ouvia um lamentar agourento de uma acauã e, mais longe ainda, já nos ermos da madrugada, a cadência surda, monótona e desengonçada das mulas de carga tangidas pelos tropeiros rumo às brenhas do alto sertão... Além de tudo isso, reinava o silêncio e nada mais...

          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...
          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...

          Um grito longo vaticina,
          Em timbre oco, agourento,
          Que uma vida se destina
          A espalhar-se como vento.

          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...
          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...

          E neste lamento a acauã,
          De angustiada precisão,
          Mata-me o dia de amanhã,
          E os demais qu’inda virão.

          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...
          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...

          Pois nesta ave agourenta,
          De um piado grosso, forte,
          Repousa a noite sonolenta,
          E um canto lúgubre de morte.

          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...
          Acauã!... con’ã!.. Vá-có!...

     A macabra ideia de tudo que parecia esconder aquele vaticínio pesaroso e triste feria a madrugada silenciosa.
     Atormentava-me o canto vaticinador e tenebroso daquela estranha ave, cujo alardear doía-me na alma e nos tímpanos. Ouvindo tudo aquilo e vencido pelo cansaço, dormi finalmente.
     Pela manhã, sem o merecido descanso e tendo os céus por testemunha de que as muriçocas têm o vigor de um leão e agem de um modo igualmente impiedoso, dirigi-me ao único semanário local, intitulado Os Sertões e, diga-se de passagem, de uma qualidade considerável, onde fui atendido pelo seu editorialista, um tipo amorenado, casco de cuia, baixote, metido a Jorge Amado e que tinha na cabeça não sei quantos livros lidos. Fiquei impressionado, logo de cara, pela qualidade vernacular e o sóbrio conhecimento livresco e literário do sujeito. Era uma verdadeira biblioteca ambulante. Se tocassem fogo em qualquer biblioteca universal, não teria a menor importância, o tal trazia tudo memorizado, era só recompilar.
     Também era escritor, e tinha algumas resenhas e contos de uma impressionante qualidade, como testemunharia eu mais tarde.
     Mandei-lhe de cara uma pergunta:
     – Sou o escritor fulano de tal e tenho interesse em publicar algumas poesias no seu jornal e, quem sabe, editar um livrinho aqui por estas bandas, que te parece?...
     Disse-me ele:
     – Sou ouvidos, fale...
     O “sou ouvidos”, seco e direto daquele sujeito, ecoou como um pontapé no traseiro e deu-me a nítida impressão de que eu havia topado com o vencedor do torneio anual dos antipáticos, um autêntico casca grossa e, nessa altura, nem me importava se casca grossa tinha hífen ou não. Encontrava-me então diante do mal afamado Aristarco Vieira de Melo; o afrontador da mediocridade, dos politiqueiros, dos pseudo-poetas e, finalmente, um genuíno antipático, de um azedume inconteste, um tipo a quem o seu “olá, como vai” serve de prefixo ao “até logo”.
     O colunista, hei de confessar, mostrou-se, depois de demorada prosa, dono de uma extrema simpatia, mas, mesmo assim, um casca-grossa. Como isso era possível não perguntem a mim.
     Bem, trocando em miúdos, o fato é que o semanário Os Sertões cobria toda a região e disputava lugar com outros jornais da capital baiana, com os quais concorria à cata de leitores, anúncios, classificados, proclamas, etc.
     Tudo acertado e após uma saborosa e nietzschiana prosa sobre Augusto dos Anjos, cujos escritos eram, para mim, uma espécie de confessionário íntimo, remédio para todas as ocasiões, ficou Aristarco Vieira de Melo (agora já quase um parente meu) de apresentar-me a um editor dali de Curiapeba, alguém não sei o quê Waluá, em um momento oportuno, e deu-me até um exemplar de um dos livros editados por ele. Tratava-se do livro intitulado Sertão: com destaque ao pássaro sofrê e outros viventes vertebrados e invertebrados da Chapada Diamantina baiana, da escritora e socióloga Maninha de Matos Sampaio, o qual fiquei de ler oportunamente.
     Despedimo-nos, passaram-se os dias, retornei várias vezes à redação de Os Sertões, fizemos uma bela amizade, eu e o tal do Aristarco. Nesse período sustentava-me graças a parcos recursos remetidos por um editor da capital paulista através do Banco Alfomares do Nordeste Brasileiro, e ainda hospedava-me no mesmo hotel e continuava suportando o olhar de desconfiança do homenzinho improvisado de gerente que, penso, além do pagamento pelos aposentos, tinha em mente que eu deveria apresentar um certificado de autenticidade das cédulas, ou algo assim. Olhava-me como se eu fosse o responsável pelos infortúnios da humanidade. Excetuando-se este e outros pequenos entreveros, eu agora havia conseguido derrotar definitivamente as muriçocas.
     Nos dias seguintes tive a oportunidade de travar conhecimento com o Dr. Antonio Polissílabo Saraiva, o então prefeito (gente graúda não muda em lugar nenhum deste mundo); também com o Dr. Walcírio Toneleiros Waluá, provavelmente um parente do editor anteriormente citado; o pastor Genocídio Geronso Garrafino; os padres Cosmorâmico Canindé e Joaquim Torres Barrada, este último, além de um perverso glutão, era originário das terras de Cervantes. Também conheci Odilon Pederneiras Castrado, alcoviteiro-mor da cidade, um despudorado, cuja língua solta prestava-se a toda sorte de mexericos; deliciei-me com os pescados do velho Jequetiá Elisindro da Conceição; e tive a infelicidade de cair em desgraça junto à benzedeira Marculina Gravataí Horizonte, pois fez ela o favor de espalhar por toda cidade e cercanias que eu tinha partes com o tinhoso, só porque disse o que pensava sobre suas artimanhas, uma velha embusteira, isso sim era o que ela era, uma alcoviteira.
     Valeram-me alguma coisa aqueles conhecimentos: Fui convidado, por intermédio de Aristarco, para organizar recitais em nome da Secretaria de Cultura da Cidade; já não era visto como um crápula pelo homenzinho do hotel; debulhei uma série de palestras em escolas, ministrei aulas particulares aos rebentos do Coronel Turmalino Olhugordo Alcebíades e, assim, a vida parecia endireitar-se, retomar seu rumo no tortuoso ermo dos trilhos solapados pelo destino.
     Travei um bom relacionamento com Maninha de Matos Sampaio, uma fidalgota pouco simpática. Conversávamos longamente e, em várias oportunidades, sobre as novas tendências literárias surgidas após a Semana da Arte Moderna, sobre viagens e sobre seu novo livro, prefaciado por Aristarco. Ainda conheci, e na mesma ocasião, seu marido, Zito Borborema, um sujeito que deveria ser processado pelo simples fato de ter nascido. Ele era uma afronta ao gênero humano, o último remanescente vivo dos Cro-Magnon, chego a pensar.
     Nas semanas seguintes, acabei por conhecer a metade calculada da cidade, onde encontrei as pessoas com os nomes mais esquisitos, doidos e estrambólicos dos quais se podia ter notícia.
     Poucos dias depois deixei o hotel e fui hospedar-me, a convite, na fazenda Rabo de Peixe, de um fazendeiro local, um certo Dr. José Vinhais Veloso, sujeito tarracudo, dado a poucas palavras, desses que é preciso açoitar impiedosamente para ouvi-los dizer algo, e que, segundo alguns falatórios, era um renomado médico na capital baiana, onde passava a maior parte do tempo. O convite havia sido feito em verdade por sua simpática e bondosa esposa, dona Yolanda Guarabyra, numa daquelas raras visitas à cidade.
     Os ares da fazenda eram esplêndidos, travei conhecimento com um agregado de nome Bendengó, a quem todos (do padre ao bispo) chamavam de “O Vaqueiro Bendengó”, por exclusiva conta de seu ofício. A ele imputo a minha paixão pela cidadezinha.
     Daquela fazenda saí poucas vezes, uma dessas se deu em um domingo, quando fui ver de perto os festejos religiosos de Senhora Sant’Ana, ponto alto das festividades em Curiapeba. Foi onde reencontrei o escritor Paulo Moriassu Hijo e mais alguns jovens escritores, dentre eles um professor rastafári de nome Macário Ohana Vangélis, Aroldo Miguel, V. C. Meira, J. M. Nascimento, e Marcos R. Moreira, todos paulistanos. Conversamos um quilo de coisas e fui meter-me de andarilho pela cidade, detendo-me um demorado tempo na Praça das Boiadas.
     Sempre gostei das praças. Gostava de passar longas horas deliciando-me em fazer nada, absolutamente nada em uma delas. Eram horas essas que o mundo não as tem em conta na somatória total para o “fim dos dias”, porque não são existentes, é uma ruptura no tempo. É o momento em que tudo para e coisa alguma tem a menor importância.
     Algumas moças desfilavam à busca de pretendentes, coisa nada rara nas cidadezinhas interioranas. Encantei-me com os olhares pueris e rosto suave e ingênuo de uma delas. Por trás das roupas simples, sobressaindo-se uma calça amarela, ela fitava os céus à busca de nada, tinha os trejeitos de quem vive um sonho interminável. Mais adiante, um senhor amorenado sustentava um tripé onde um macaquinho vaticinava sobre a sorte dos transeuntes. Aquele tendencioso senhor queria fazer crer a todos que o monozinho era a cura de todos os males, uma espécie de profeta silvícola. Os que ali estavam, crentes ou não naquela façanha, sempre paravam para conferir.
     Toda praça sofre a reputação de ser o coração de uma cidade, aquela também, fosse pelas belas flores, pelas frondosas árvores ou pelo arrastar melancólico das horas. Lá estava eu, sorvendo o genuíno repouso dos que buscam estar a sós. São momentos em que a solidão tem o doce sabor do atemporal.
     Imperceptivelmente sobreveio-me aos ouvidos uma cançoneta:

     Toca na praça o realejo
     E a moça de calça amarela
     Ensaia roubar um beijo
     Pra atender ao desejo
     Da praça já dentro dela.

     Como é leve ver a graça
     E não saber donde ela vem.
     O macaco no centro da praça
     Vê a sorte de quem passa.
     E ele, que sorte tem?...

     E nesse eterno refluir
     Da mesma coisa universal,
     Cada fração de existir
     Parece nos prevenir:
     Você também será igual.

     Não vi mais Paulo Hijo naquela cidade, e nenhum dos recém-conhecidos escritores. As festividades de Senhora Sant’Ana estavam em seu apogeu. Caía a tardezinha assombrada com a noite vindoura e fui ter com Bendengó que se prostrara aguardando-me pacientemente no fim da Praça do Comercinho, para retornarmos à fazenda.
     O tempo passado naquela fazenda foi de um quase total isolamento, só escrevia e mais nada. Ia semanalmente ao Banco Alfomares e à redação de Os Sertões. As minhas idas à cidade foram diminuindo consideravelmente. Aumentou o convívio com as pessoas do local. As longas e antigas conversas com Aristarco agora ganharam lugar com Bendengó, um sujeito entendedor de um tudo, desde caçada de onça ao cultivo da macaxeira. Com ele ganhei verdadeiro gosto pelo sertão e pelas paragens onde agora vivia. O cabra, já sexagenário, era do tipo que não bota a mão em cumbuca. Desconhecia o medo, era contido e sóbrio. Com ele aprendi sobre épocas de plantio, colheitas, retiro do gado, picadas de cascavel, caçar tatu e um monte de outras coisas que encheriam um livro. Em tudo que me ensinava ele concluía em tom de admoestação: “meo fio, nóis in tudu tem di sê prosistente i nessa vida num se á di tê marquerença”.
     O certo é que o acérrimo protagonizador das dores do mundo, Augusto dos Anjos, juntamente com seu pessimismo, repousavam agora numa gaveta qualquer do quarto onde eu dormia.
     Seguiram-se noites e mais noites à beira de um fogo fraco, sustentando o incerto dos dias nas cordas mal afinadas da viola de Bendengó, um violeiro entre médio e ruim. Este matuto saiu-me melhor que a encomenda; um negralhão de olhos brancos, barba rala, cabeça esbranquiçada, todos os dentes na boca, conversa mansa e um coração maior que o corpo. Era nobre, terno e amável, isso estendido também à família, especialmente à filha, Filó, que despertou em mim os mais insuspeitos sentimentos humanos.
     Quando era noitinha sempre se escutava aquele capiau sair com estas palavras: “zanan, filó, didinha, vem prosiá cum nóis”. E aí a noite ficava pequena e o dia mais distante.

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